sexta-feira, outubro 19, 2007

Adiante

Catarina finalmente achou que havia encontrado alguém pra vida toda, alguém com quem pudesse contar, que a levasse para jantar no sábado a noite e andasse de mãos dadas com ela. Mas o que Catarina não sabia é que Júlio tinha medo.

Ele lembrava do passado e tinha medo de esticar as mãos para outra mulher, estremecia ao pensar que podia sentir tudo de novo.

Ela agia ao contrário: Olhava para o passado e queria ter a felicidade de antes, se jogar de cabeça. Não somente esticar as mãos, mas segurar bem forte a do outro.

Um beijo uniu os dois, mas os corações batiam diferente. O olhar de um era medo, o do outro era esperança.

E então Catarina descobriu que segurar na mão do medo lhe tirava toda a esperança possível.

Guardou mais uma decepção no peito, encheu os olhos de coragem e não desistiu. Olhou para frente e viu uma longa rua, uma subida. Sentiu-se cansada. Sentou na beira da calçada, recuperou o ar e continuou a seguir.

Olhou para trás por um momento e percebeu o quanto já havia caminhado. Não enxergava lá atrás o começo de tudo. Estava muito distante.

Apontou o nariz para frente e sentiu que lá na frente caminhava alguém que tinha a esperança de óculos, assim como na música de Elis.

Não conseguia ver ainda a face do que lhe esperava, mas sabia que estava lá!

Calçou um sapato mais confortável e apenas seguiu.

quinta-feira, junho 21, 2007

José Roberto, o moço da radiografia

José Roberto trabalhava de madrugada, saía de casa às onze da noite quando a maioria estava se recolhendo. Pegava o último ônibus e caminhava mais dois quarteirões até chegar ao hospital em que trabalhava. O turno ia da meia noite às seis.
Entrava no prédio do hospital, subia de elevador até o segundo andar e de lá ia a pé até o terceiro, onde só se chegava pelas escadas. Ao subir os degraus seguia para esquerda em direção ao setor de radiologia. Vestia o avental branco e se preparava para as noites que eram quase sempre lotadas de pacientes que precisam de radiografia. Havia noites que ele ficava tanto tempo no escuro da sala que mal se lembrava como era a luz do dia.

- Boa noite.
- Boa noite - respondeu a moça.
- A senhora pode, por favor, tirar o sutiã e a blusa e vestir esse avental?
- Sim.
- Pode usar aquele banheiro ali.
- Ok.

Ele achava estranho ter aquele tipo de conversa com as mulheres que chegavam lá. Porque na realidade ele nunca havia pedido isso para uma mulher que não fosse dentro da sala de radiologia, e nenhuma nunca havia feito isso por livre espontânea vontade quando estava com ele.
Ele sempre fora sozinho. Sempre!
Ele era calado, não tinha muitos amigos e nem muito o que fazer quando estava em casa. Por isso ansiava para chegar a hora de ir para o hospital e trocava as folgas com os outros técnicos de radiografia, porque nunca tinha compromisso no fim de semana.

- Pronto
- Ok, pode deitar de barriga para cima. O que lhe aconteceu?
- Não sei, acordei de madrugada com uma dor muito forte nas costas. O médico acha que pode ser apendicite - a mulher explicava enquanto ele ajeitava o corpo dela e a máquina.
- Certo. Não se mexa. Quando eu pedir você prende a respiração por uns segundos.
- Está bem.

Ela era magra, cabelos longos, liso, e tão pretos que brilhavam. Depois dela vieram mais três, uma baixinha de cabelos curtos e ruivos, uma senhora gordinha, e por último, uma negra bonita de cabelos armados e encaracolados.
Ele ficava intrigado. Olhava as radiografias, tentava entender como é que ele, justo ele, não conseguia conquistar a alma de uma mulher.

- Justo eu que vejo todos os dias como é que elas são por dentro - pensava.

Por vezes ficava horas olhando fixamente para as fotografias para saber se, de repente, em um instante de distração da alma feminina, a emissão eletromagnética pudesse ter flagrado uma aventura qualquer do pulsar dos sentimentos mais íntimos de uma mulher.
Mas era díficil. A alma era quase sempre tão esperta que não deixava se fotografar.
José Roberto não desistia. A radiografia era sua paixão. Paixão que tinha encontrado para satisfazer a falta que lhe fazia ter uma paixão de verdade.
Paixão que se apegava sempre que o hospital estava vazio. Assim ele podia imaginar como seria o exterior de tudo o que ele havia visto interiormente.

- Como será? E aproveitava para inventar lembranças de momentos que havia vivido com cada uma das mulheres que por lá passavam. Ficava em silêncio pensando, vendo o que poderia ser.
- José Roberto, tem uma paciente aguardando.
- Pode mandar entrar.
Dessa vez era uma loira, de quase quarenta.
- Prende a respiração quando eu pedir.

E ele entrava na sala escura para acionar os botões com a esperança de que a foto pudesse lhe mostrar algo mais. E depois tinha mais tempo pra pensar no que não fora, no que não era, no que nunca seria. No final, ele era assim: não via nada por dentro, nada por fora. Só um imenso vazio dentro de si por ver tanto e, afinal, não ver nada.
E então ele seguia sendo apenas o José Roberto, o moço da radiografia.

segunda-feira, maio 07, 2007

Luiza nunca brincou

Luiza foi a primeira dos trezes filhos de Maria e Joaquim, moradores de uma fazenda localizada no Sul de Minas, na cidade de Conceição dos Ouros, bairro do Caxambu. Ela nunca brincou. E também nunca estudou. Lá não havia escola. A menina até freqüentara uma quando um fazendeiro generoso contratou uma professora para ensinar seus filhos e cedeu algumas vagas para filhos de vizinhos. Mas a “regalia” não duraria por mais de seis meses. A professora foi embora e também não dava pra perder tempo com escola quando se tinha tanto o que fazer em casa.
Ela era primeira mulher da família e logo viriam seus outros irmãos e Luiza, desde os seus sete anos, precisava ajudar sua mãe Maria.
- Mamãe tem sempre muita roupa pra costurar.Às vezes o bolo de panos é tão grande que ela não vence de tanto trabalhar. Eu preciso cuidar dos meninos, trocar as fraldas, ajudar na limpeza da casa, levar a marmita para o pai lá na roça. O fogão a lenha da cozinha é muito alto para mim. Mas mamãe providenciou um banquinho. Eu subo nele e pronto, posso cozinhar a vontade.
- Luiza, mas quando é que você brinca?
- Eu nunca brinco. Só às vezes né? Quando sobra algum tempinho e alguém vem aqui brincar comigo.
- E você brinca do que menina?
- Ah, quando alguma das vizinhas vem aqui a gente brinca de casinha.
- Mas não é isso que você faz quando não está brincando?
- É, mas aí é de verdade né?
- E qual a diferença?
- Ah, eu sempre guardo os pedaços de louça que se quebram e finjo que são panelinhas, xicrinha... Essas coisas. Aí a gente vai na horta da mãe e apanha uns matinhos pra fingir que é comidinha.
E assim, raramente, ela brincava. E quando brincava, repetia sua rotina diária, só que de brincadeirinha.
A menina foi crescendo sem brincar. No cafezal do pai conheceu Jeremias.
- Eu fiquei com medo quando ele chegou perto de mim. Porque se o pai vê ele lá conversando comigo enquanto eu trabalho ele fica bravo.
Namoraram oito meses. E ela continuava sem brincar. Jeremias fora para São Paulo, arrumara emprego e voltou pra buscar Luiza.
Com 17 anos Luiza casou-se com ele e só conheceu sua casa quando chegou a São Paulo, no dia seguinte ao casamento. Aí ela conheceu o lugar que seria uma brincadeira só dela. Aos vinte teve Eunice, depois vieram os gêmeos Ézio e Elza, seguidos do Ezequias.
Ela crescera sendo mulher, crescera sendo mãe, nascera quase crescida. E depois viria a próxima geração e ela mais uma vez não tinha tempo pra brincar.
Ela aprendeu a fazer da vida o lavar, o passar, o matar a galinha, o colher fruta no pomar, o cozinhar, o apanhar hortaliças, o tirar leite da vaca, o educar os filhos. A sua vida sempre foi um eterno servir.
E eu me pergunto intrigada: Como é que ela consegue ser assim tão amável?

Conto baseado na história verídica de Luiza Moreira da Silva, minha doce avó.

sexta-feira, abril 20, 2007

Instante Inútil

Às seis da manhã não se pensa em muita coisa. A cabeça fica vazia por um tempo até que os sentidos comecem a funcionar com o devido entusiasmo. João acordara há pouco mais de 15 minutos e já estava pronto para ir ao trabalho. Depois de colocar a maleta no carro, começou a dirigir em direção ao escritório.
Clélia já estava acordada, saíra de casa para deixar os filhos na escola e já seguia para o colégio onde lecionava, apressada, como sempre. O trânsito caótico a deixava irritada. A avenida mais movimentada do bairro tinha congestionamentos enormes naquela hora da manhã.
João procurava uma música interessante no rádio pra se distrair e tentar driblar o sono.
Clélia pensava nas provas que tinha que corrigir a tarde.
Os dois emparelharam os carros, o carro vermelho de Clélia á esquerda do carro preto de João. Os dois olharam no relógio e o farol continuava fechado.
- As ruas da cidade estão congest...
- Agora você escuta mais um sucesso brasileiro aqui na...
- O resultado do PIB deve aumentar este ano para...
- Love, love me do. I know I Love you,so pleeasse.
O sol está forte.
Clélia procura os óculos escuros na bolsa.
Antes de o farol abrir ela já aguardava com o pé na embreagem e a primeira marcha engatada. No verde já estava pronta a sair.
Os sentidos que João tentava acordar com as estações do rádio de repente perceberam que ele podia estar há alguns metros a frente, ele devia estar há alguns metros a frente.
- Preciso chegar logo no trabalho, lembrou.
Prontamente ele pisou no acelerador e já estava ao lado do carro de Clélia novamente.
- Preciso passar esse carro. Vai, anda camarada. Anda que eu quero entrar na frente do carro vermelho, pensava.
A professora já pensava nas compras no supermercado que devia fazer quando saísse do trabalho.
Quando o carro da frente acelerou um pouco João ocupou o espaço dele e repentinamente jogou o carro para a pista à sua esquerda, logo a frente do carro de Joana.
Ela lembrou-se que precisava chegar logo a aula. Ficou irritada porque poderia estar ali, no lugar do carro preto.
- Mas que droga, por que eu o deixei entrar? Era pra eu estar ali, uma posição a frente.
Foram tentando se superar. Todas as outras coisas pareciam ter sido esquecidos, porque os dois vislumbravam-se com o poder e queriam estar no topo, e chegar primeiro, e andar mais rápido, e saber mais, e ser mais esperto, e dirigir melhor, e ter o melhor carro, e saber fazer as melhores manobras, e chegar, chegar, chegar sempre antes.
Foram assim, até que Clélia teve que entrar à direita, seguiu outro rumo, deixando João sozinho, já com os sentidos acordados e entusiasmados, mas sem mais ninguém para superar. Continuou seguindo o seu caminho.
Ambos chegaram no mesmo exato momento ao local de trabalho. Cada um em um canto da cidade, sem ter ganhado absolutamente nada, sem ter se superado em nada, sem provar nada a si mesmo.
Foi somente mais um dia, um instante de luta inútil com as quais a maioria dos seres humanos perde grande parte do dia.

quarta-feira, abril 18, 2007

Dama da Noite

Girou a chave, pisou na embreagem, engatou a primeira e pisou vagarosamente no acelerador. Estava feliz, muito feliz. Saía de um jantar em família em que se sentia incrivelmente bem.
- Nós vamos ter um bebê, havia revelado há pouco para os pais e sogros que estavam na sala de sua antiga casa.
As famílias brindaram e ela sentia que aquele era um dos momentos mais sublimes pelo qual já havia passado. Era incrível saber que ela carregava uma vida dentro dela, uma vida novinha, que ia descobrir todas as coisas que ela já vira. E ela, ela e ele eram os responsáveis por tudo.
Despediu-se de todos e partiu para casa. Ele saíra um pouco antes para levar os pais. Se encontrariam mais tarde.
Samantha bateu a porta do apartamento de sua mãe e enquanto esperava o elevador pensava em todas as coisas boas que já lhe haviam acontecido, em como tudo estava se indireitando.
Engatou a segunda. A terceira. Ligou o rádio.
A noite estava linda, quente. Lembrou-se de quando era criança e os pais colocavam as cadeiras na calçada e ficavam conversando com os vizinhos, bebendo cerveja, comendo amendoim. Agora ela também daria boas lembranças ao seu próprio filho. Ela esperava que ele nascesse numa noite como essa e que ele pudesse, ao sentir cheiros diferentes, lembrar também de momentos que haviam lhe feito bem.
Parou no semáforo, uma árvore de Dama da Noite exalava um profundo cheiro de passado. Lembrou-se do sítio de sua vó, onde passava todas as férias, quando criança. Lá havia um árvore como aquela. E ao lado via-se balanços, onde as crianças costumavam ficar horas se balançando e quando a noite vinha, lhe enchia os pulmões o cheiro das flores.
- Se vovô estivesse vivo iria costruir um balanço pro neném, assim como ele fez com todos os netos, pensou.
Com o pensamento longe ainda submerso no perfume das noites de férias, nem percebeu quando parou ao seu lado um homem. Não viu seu rosto. Estava escuro.
A mão do homem entrou sobre o vão do vidro aberto, apertou-lhe a garganta e pediu que lhe passasse a bolsa, a carteira, o celular, o carro, tudo o que tinha.
Ela tirou o cinto de segurança. Pediu somente para pegar o sapatinho de tricô que o marido havia comprado e lhe presenteado durante o jantar. O homem deixou.
- Agora vire as costas e saia andando sem olhar pra trás.
Samantha chorava. Obedeceu.
O homem entrou no carro e acelerou. Ela sentiu um alívio e segurava firme o sapatinho de tricô enquanto se distanciava cada vez mais das damas da noite.
Inesperadamente o homem engatou a marcha ré. Desceu do carro e, antes que ela pudesse entender o que estava acontecendo, uma bala passou pela sua nuca. Os sapatinhos, que eram amarelos, ficaram caídos ao lado dela.
O carro arrancou e sumiu na escuridão.
Pela última vez, numa noite como aquela, ela sentia o cheiro da dama da noite.
Os olhos fecharam.
Pela primeira vez, numa noite como aquela, as damas da noite não mais tinham cheiro.

quinta-feira, fevereiro 01, 2007

Palavras que não dizem

- Olha menina... Olha a bola rolando pro outro lado. Corre, pega ela. Vai cair no rio. Vai cair...
Ela corria e se apressava.
Os pés estavam sujos, o corpo suado, os cabelos ruivos presos num alto rabo de cavalo. Ela sorria enquanto corria.
- Ah Maíra. E agora? Quem vai pegar a bola?, reclamou.
- Deixa que eu pego. Ah, tá calor! Eu vou entrar na água. Não quer vir?
Ah, como ela era corajosa, ele pensava.
- Mas sua mãe não vai gostar da sua roupa molhada.
Era tarde demais. Ela já havia se jogado na água e sorria, sorria. Ele via tudo em câmera lenta. As gotas que espirravam caíam devagar entre os movimentos de Maíra, que pulava, mergulhava, voltava a superfície.
Ele a admirava, ela parecia uma bailarina.
- Venha, vamos terminar o jogo aqui. A gente se seca no sol antes de voltar pra casa. Vem.
- Mas Maíra...
Inesperadamente ela saiu da água, correu rapidamente na direção dele e o abraçou.
- Pronto, ela gargalhava. Agora você já está molhado. Larga de ser fresco.
E puxou- o pela mão. Ele abriu um sorriso e correu com ela de mãos dadas até o lago.
Pularam os dois juntos e riam, riam e jogavam água um no outro.
- Sabe de uma coisa? Você é meu melhor amigo.
Ele ia responder, até chegou a abrir a boca para pronunciar a palavra, mas ela mergulhou repentinamente. E quando voltou acima já era outro momento.
- Eu duvido que vc me pegue... Vai ficar aí parado é? Seu maricas.
Ele mergulhou atrás dela, agarrou-lhe os calcanhares. Subiram para a superfície.
- Quem é maricas aqui?
- Ah, eu que deixei você me pegar.
Silêncio.
- Eu queria te dizer uma coisa.
- Diga logo. Você não precisa me avisar que vai dizer alguma coisa. Apenas diga. Seu bobão. Eu não gosto dessa sua mania de querer explicar tudo o que você vai fazer.
- É que quando você disse eu era seu melhor amigo...
- É verdade oras, interrompeu ela. Você acha que é mentira. Eu adoro brincar com você porque você joga bola muito bem ,sobe em árvore mais rápido que ninguém, me leva doces gostosos que sua mãe faz. Eu acho que é por isso né? A minha mãe me disse outro dia que pra gente descobrir quem é o nosso melhor amigo, é só a gente perceber em quem é que a gente pensa quando tem a idéia de uma nova brincadeira, ou, quem a gente quer ver primeiro quando está triste. Eu pensei e aí vi que eu sempre penso em você. Deve ser porque você me conta piadas quando estou triste e sempre aceita minhas idéias. Ah, e você diz que meu cabelo de fogo é o mais bonito de todos. Você fala coisas bonitas. Vem, vamos sair. A gente precisa se secar.
Deitaram na grama, na margem do lago.
- Ah, mas você tinha algo a me dizer. Eu sempre desando a falar, riu a garota.
Ele ficou em silêncio. O sol começava a se pôr. Os dois estavam deitados de barriga para cima lado a lado e olhavam fixamente o céu rosado de final de tarde.
- Eu ia dizer... Eu não ia dizer nada.
Pegou na mão dela e ficaram ali por horas sem dizer uma palavra.
-Eu não quero dizer nada. Eu não preciso dizer nada...

sexta-feira, janeiro 26, 2007

Caixinha de Música




Era hora de ir embora e se livrar do ambiente que há poucos minutos parecia-lhe hostil. Abriu a porta do carro. Sobre o banco uma caxinha de música azul decorada com um mosaico em forma de coração. Catarina achava lindo coisas de amor, adorava letras e poemas, mas não acreditava mais que o amor poderia fazer parte de sua vida. Não cria que um dia a canção da caixinha de música iria tocar mais bela quando ela a abrisse no sábado a noite antes de sair de casa.
Pegaram a estrada, Lilian dirigia e Catarina estava sentada no banco do passageiro. As duas eram grandes amigas, as vezes um milhão, as vezes uma metade da outra. Eram muito diferentes, mas havia dias que nasciam iguais.
Lilian viu que pouco a pouco o semblante de Catarina fazia-se mais pesado, mais áspero e começava a umedecer. Há tempos que sua face já não era igual, há tempos que estava ficando assim cada dia mais vazia, como se ela perdesse os olhos que enxergavam com o coração, a boca que falava com o sentimento e o nariz que sentia o cheiro das flores. Lilian se entristecia cada vez que via sua irmã mais velha deste jeito pois era como se um pedaço dela mesma estivesse despedaçado, porque ela se sentia satisfeita quando a irmã podia sorrir e quando a irmã contava dos finais de semana animados, das compras que tinham estourado o limite do cartão de crédito ou mesmo se quando preocupava com os bíquinis que precisava levar para passar as férias na praia.
Lili, como a irmã a chamava, estava cansada de ver o cansaço da irmã, porque ele a fazia se sentir imensamente impotente. E naquela noite, enquanto a irmã mais velha chorava com a caixinha de música no colo, com o carro a 120 por hora, Lili desejou por um momento que pudesse ter controle de vida da sua melhor amiga, assim como guiava o carro na estrada escura. Ela queria acender os faróis, trocar de faixa, aumentar a velocidade e deixar o vento bater no rosto de Catarina levando embora tudo o que não era dela. Mas naquela momento os desejos não se realizavam e as lágrimas molhavam o coração feito com pedaços de azulejo fixados com massa corrida na caixinha azul.
A irmã mais nova disse o que costumava dizer, mas disse menos do que queria, porque temia que com a repetição de suas palavras a irmã mais velha se tornasse mais descrente. Lilian sempre dizia as mesmas coisas, mas não, não era em vão. Ela realmente acreditava, mas quando falava para Catarina tinha a impressão de que não surtiam efeito, que a fé havia se tornado tão rarefeita, que com a face diluída, nem mesmo os ouvidos eram capazes de ouvir com esperança.
Antes de dormir, naquela noite, Lili fez uma prece em favor da irmã, acordou pensando em sua dor e queria mesmo que ela tivesse de volta o que lhe tiraram, queria que o coração de Cate pudesse ser colado com massa corrida numa história azul onde houvesse música e sonhos brilhantes. Queria que ela fosse novamente ela.
E se dispôs a pedir a Deus todos os dias por ela, até o sol iluminar a estrada dela. Até que ela pudesse abrir a caixinha de música, apanhar uma jóia e ir ao cinema de mãos dadas. (29/08/2006)

Um pé na frente do outro

Quem me dera um dia só por vez, uma noite bem dormida, um prazer a cada 12 horas, uma alegria em horas. E então sabe-se lá amanhã, sabe-se lá o que tem, mas sabe-se sempre que saberemos ser o que esperamos, que seremos o que queremos.
O tempo limita, mas é preciso,ainda assim, saber construir, mesmo que demore mais do que esperamos.
(15/09/2006)

O Mundo desconhecido

De todas as coisas que já haviam sido ditas, de todas as histórias que havia ouvido, de tudo que já lhe havia acontecido, aquilo era, inexplicavelmente, uma das mais dolorosas sensações. Kátia ainda não se enxergava como mulher e exatamente por isso,vez por outro, agia como criança, como se quisesse afirmar para si mesmo que ainda era só uma menina.
Ela começava a entender que crescera porque pela primeira vez, a dor doía mais tempo do que alguns minutos. Quando a gente é criança, as dores não dóem por muito tempo. Você chora, esperneia, mas há sempre alguma outra brincadeira a esperar.
Mas acredite, quando as coisas parecem ficar mais doloridas, abra os braços e receba a vida adulta, porque os problemas já não são mais tão pequenos.
Crescer era muito mais do que poder sair sozinha, do que poder tomar conta da própria vida, crescer era acima de tudo, escolher quem ela queria ser.
O problema das escolhas é que quase sempre elas levam a caminhos completamente diferentes e Kátia percebera que todos os dias, todas as manhãs que abrisse os olhos, já começaria a maratona de escolhas.
Ela escolheria a roupa que vestiria para o trabalho, que trabalho priorizaria sobre a mesa abarrotada de papéis, escolheria se iria jantar com uma velha amiga ou matar a saudades do namorado, escolheria se queria viajar no final de semana ou se começaria as aulas de francês.
E isso tudo lhe metia medo. Um medo que entrava pelo nariz, junto à respiração e lhe percorria o corpo todo.
As vezes ela acordava de manhã achando ainda ser criança. Ela esperava a mãe acordá-la e imaginava que o uniforme da escola estaria pronto para ser vestido, mas de repente, ela se via sob sua própria responsabilidade.
E para Kátia doeu. Doeu crescer, doeu ver que mundo é assim tão doído, tão sujo, tão diferente do que ela imaginava ser.