quarta-feira, outubro 25, 2006

Somente ser

Cortou o peito tranversalmente com o bisturí. Arrancou a pele.
Entre o coração e peito havia um vazio cheio de ar, um ar rarefeito, uma bolha de ar. Há tempos que estava lá. Há tempos que doía a ela aquele espaço cheio daquilo.
Era o mal do século. Todo mundo achava que tinha, mas só alguns tinham mesmo. Ela tinha!
Olhava no espelho. Enfiou a mão no buraco estampado no peito, retirou com dor e pesar aquele ar preso que contraditoriamente, lhe fazia perder o ar. Sentiu se leve, toda a ansiedade e pontadas que sentira não mais existiriam.
O ar preso se esvaiu pelo seu banheiro, saiu pela janela. Ela tentou pegá-lo, mas não conseguiu. Temia que ele achasse outro peito pra se alojar.
Tinha sido muito difícil ter coragem para arrancar o mal pela raiz. Leve como estava, costurou o corte e dormiu tranquilamente.
Não mais se humilharia. O ar não tinha mais nenhum poder sobre os seus pensamentos e coração. Ninguém mais gozaria de suas atitudes, ninguém mais diria que ela estava exagerando.
Ela não tinha mais idéias como as de antes. Era livre para somente ser.

quarta-feira, outubro 04, 2006

Jogo de queimada

-Chega! Chega - repetiu
Ela estava cansada, cansada de ter que entender todo mundo, de ter que dar conselhos, de ter que dizer sim, de ter que sorrir, mas o que mais a cansava era ter que ouvir o que ela mesma plantara, mas que na verdade, não devia ouvir.
E foi por isso que gritou bem alto, como se a partir daquele momento aquilo tudo fosse deixar de existir.
-Eu sempre fui assim, sempre fui assim.
Ela sempre deixou que os outros fizessem o que quisessem com ela. Ela tinha medo de dizer. Quando era criança e brincava na rua, era sempre a última a ser escolhida para o time da queimada. Era aquela que sobrava, a mais fraca.
- Eu sempre fui a mais fraca, mas também nunca fiz questão de tentar ser forte.
É. Nunca fez mesmo. Ela deixava que os outros dissessem o que quisessem, fizessem o que quisessem, e ainda por cima, se aceitava como a mais frágil, como a mais fraca no time de queimada.
- Eles não me escolhiam porque eu realmente não sabia jogar. Só por isso.
Era assim que justificava os atos dos outros para si mesma. Mas os anos foram passando e na vida adulta pouco importava seu desempenho na queimada, pouco importava se ela conseguia se proteger da bola do time adversário.
- Mas importa quantas vezes eu me calo.
Cada vez que ela se calava diante de uma afronta era como se ela não se importasse de ser a última a ser escolhida. Na infância, a hostilidade havia se instalada de tal forma no coração dela que como se quisesse se sentir melhor, tentou, cada dia mais, ser forte.
- Acontece que ser forte não adianta em nada quando não se diz o que pensa, quando se deixa dizerem o que querem.
A grande verdade é que ela se acostumara a se calar para não chatear os outros e para não perder, por hora, o prestígio que havia alcançado entre os amigos, familiares e colegas.
- Eu tenho medo de não ser mais escolhida. Eu tenho medo, de reviver agora a hostilidade da infância.
E já fazia tempo em que ela havia conquistado o seu espaço nos jogos da vida. Mas o tempo não a ensinara que ela precisava ainda, por mais ridículo que pudesse ser, de um pouco de auto-afirmação, de confiança em si mesma e de personalidade para afirmar sem medo o que fazia sua cabeça doer irritantemente.
- Dizem que eu falo demais, mas a verdade é que poucas vezes eu falo o que eu realmente quero dizer, principalmente quando preciso dizer verdade duras para quem eu amo.
E o grito inicial só serviu para dar start em uma auto-análise que nem ela sabia se ia fazer algum sentido na realidade.
- Eu não sei se posso gritar Chega!
O primeiro grito acontecia apenas em seu íntimo enquanto a vida continuava a passar e os jogos a acontecerem. O grito só serviu para entender a si mesma. Mas entender a si mesma, ainda estava longe de ser um Grito forte, firme e sem temor.