sexta-feira, abril 20, 2007

Instante Inútil

Às seis da manhã não se pensa em muita coisa. A cabeça fica vazia por um tempo até que os sentidos comecem a funcionar com o devido entusiasmo. João acordara há pouco mais de 15 minutos e já estava pronto para ir ao trabalho. Depois de colocar a maleta no carro, começou a dirigir em direção ao escritório.
Clélia já estava acordada, saíra de casa para deixar os filhos na escola e já seguia para o colégio onde lecionava, apressada, como sempre. O trânsito caótico a deixava irritada. A avenida mais movimentada do bairro tinha congestionamentos enormes naquela hora da manhã.
João procurava uma música interessante no rádio pra se distrair e tentar driblar o sono.
Clélia pensava nas provas que tinha que corrigir a tarde.
Os dois emparelharam os carros, o carro vermelho de Clélia á esquerda do carro preto de João. Os dois olharam no relógio e o farol continuava fechado.
- As ruas da cidade estão congest...
- Agora você escuta mais um sucesso brasileiro aqui na...
- O resultado do PIB deve aumentar este ano para...
- Love, love me do. I know I Love you,so pleeasse.
O sol está forte.
Clélia procura os óculos escuros na bolsa.
Antes de o farol abrir ela já aguardava com o pé na embreagem e a primeira marcha engatada. No verde já estava pronta a sair.
Os sentidos que João tentava acordar com as estações do rádio de repente perceberam que ele podia estar há alguns metros a frente, ele devia estar há alguns metros a frente.
- Preciso chegar logo no trabalho, lembrou.
Prontamente ele pisou no acelerador e já estava ao lado do carro de Clélia novamente.
- Preciso passar esse carro. Vai, anda camarada. Anda que eu quero entrar na frente do carro vermelho, pensava.
A professora já pensava nas compras no supermercado que devia fazer quando saísse do trabalho.
Quando o carro da frente acelerou um pouco João ocupou o espaço dele e repentinamente jogou o carro para a pista à sua esquerda, logo a frente do carro de Joana.
Ela lembrou-se que precisava chegar logo a aula. Ficou irritada porque poderia estar ali, no lugar do carro preto.
- Mas que droga, por que eu o deixei entrar? Era pra eu estar ali, uma posição a frente.
Foram tentando se superar. Todas as outras coisas pareciam ter sido esquecidos, porque os dois vislumbravam-se com o poder e queriam estar no topo, e chegar primeiro, e andar mais rápido, e saber mais, e ser mais esperto, e dirigir melhor, e ter o melhor carro, e saber fazer as melhores manobras, e chegar, chegar, chegar sempre antes.
Foram assim, até que Clélia teve que entrar à direita, seguiu outro rumo, deixando João sozinho, já com os sentidos acordados e entusiasmados, mas sem mais ninguém para superar. Continuou seguindo o seu caminho.
Ambos chegaram no mesmo exato momento ao local de trabalho. Cada um em um canto da cidade, sem ter ganhado absolutamente nada, sem ter se superado em nada, sem provar nada a si mesmo.
Foi somente mais um dia, um instante de luta inútil com as quais a maioria dos seres humanos perde grande parte do dia.

quarta-feira, abril 18, 2007

Dama da Noite

Girou a chave, pisou na embreagem, engatou a primeira e pisou vagarosamente no acelerador. Estava feliz, muito feliz. Saía de um jantar em família em que se sentia incrivelmente bem.
- Nós vamos ter um bebê, havia revelado há pouco para os pais e sogros que estavam na sala de sua antiga casa.
As famílias brindaram e ela sentia que aquele era um dos momentos mais sublimes pelo qual já havia passado. Era incrível saber que ela carregava uma vida dentro dela, uma vida novinha, que ia descobrir todas as coisas que ela já vira. E ela, ela e ele eram os responsáveis por tudo.
Despediu-se de todos e partiu para casa. Ele saíra um pouco antes para levar os pais. Se encontrariam mais tarde.
Samantha bateu a porta do apartamento de sua mãe e enquanto esperava o elevador pensava em todas as coisas boas que já lhe haviam acontecido, em como tudo estava se indireitando.
Engatou a segunda. A terceira. Ligou o rádio.
A noite estava linda, quente. Lembrou-se de quando era criança e os pais colocavam as cadeiras na calçada e ficavam conversando com os vizinhos, bebendo cerveja, comendo amendoim. Agora ela também daria boas lembranças ao seu próprio filho. Ela esperava que ele nascesse numa noite como essa e que ele pudesse, ao sentir cheiros diferentes, lembrar também de momentos que haviam lhe feito bem.
Parou no semáforo, uma árvore de Dama da Noite exalava um profundo cheiro de passado. Lembrou-se do sítio de sua vó, onde passava todas as férias, quando criança. Lá havia um árvore como aquela. E ao lado via-se balanços, onde as crianças costumavam ficar horas se balançando e quando a noite vinha, lhe enchia os pulmões o cheiro das flores.
- Se vovô estivesse vivo iria costruir um balanço pro neném, assim como ele fez com todos os netos, pensou.
Com o pensamento longe ainda submerso no perfume das noites de férias, nem percebeu quando parou ao seu lado um homem. Não viu seu rosto. Estava escuro.
A mão do homem entrou sobre o vão do vidro aberto, apertou-lhe a garganta e pediu que lhe passasse a bolsa, a carteira, o celular, o carro, tudo o que tinha.
Ela tirou o cinto de segurança. Pediu somente para pegar o sapatinho de tricô que o marido havia comprado e lhe presenteado durante o jantar. O homem deixou.
- Agora vire as costas e saia andando sem olhar pra trás.
Samantha chorava. Obedeceu.
O homem entrou no carro e acelerou. Ela sentiu um alívio e segurava firme o sapatinho de tricô enquanto se distanciava cada vez mais das damas da noite.
Inesperadamente o homem engatou a marcha ré. Desceu do carro e, antes que ela pudesse entender o que estava acontecendo, uma bala passou pela sua nuca. Os sapatinhos, que eram amarelos, ficaram caídos ao lado dela.
O carro arrancou e sumiu na escuridão.
Pela última vez, numa noite como aquela, ela sentia o cheiro da dama da noite.
Os olhos fecharam.
Pela primeira vez, numa noite como aquela, as damas da noite não mais tinham cheiro.