sexta-feira, janeiro 26, 2007

Caixinha de Música




Era hora de ir embora e se livrar do ambiente que há poucos minutos parecia-lhe hostil. Abriu a porta do carro. Sobre o banco uma caxinha de música azul decorada com um mosaico em forma de coração. Catarina achava lindo coisas de amor, adorava letras e poemas, mas não acreditava mais que o amor poderia fazer parte de sua vida. Não cria que um dia a canção da caixinha de música iria tocar mais bela quando ela a abrisse no sábado a noite antes de sair de casa.
Pegaram a estrada, Lilian dirigia e Catarina estava sentada no banco do passageiro. As duas eram grandes amigas, as vezes um milhão, as vezes uma metade da outra. Eram muito diferentes, mas havia dias que nasciam iguais.
Lilian viu que pouco a pouco o semblante de Catarina fazia-se mais pesado, mais áspero e começava a umedecer. Há tempos que sua face já não era igual, há tempos que estava ficando assim cada dia mais vazia, como se ela perdesse os olhos que enxergavam com o coração, a boca que falava com o sentimento e o nariz que sentia o cheiro das flores. Lilian se entristecia cada vez que via sua irmã mais velha deste jeito pois era como se um pedaço dela mesma estivesse despedaçado, porque ela se sentia satisfeita quando a irmã podia sorrir e quando a irmã contava dos finais de semana animados, das compras que tinham estourado o limite do cartão de crédito ou mesmo se quando preocupava com os bíquinis que precisava levar para passar as férias na praia.
Lili, como a irmã a chamava, estava cansada de ver o cansaço da irmã, porque ele a fazia se sentir imensamente impotente. E naquela noite, enquanto a irmã mais velha chorava com a caixinha de música no colo, com o carro a 120 por hora, Lili desejou por um momento que pudesse ter controle de vida da sua melhor amiga, assim como guiava o carro na estrada escura. Ela queria acender os faróis, trocar de faixa, aumentar a velocidade e deixar o vento bater no rosto de Catarina levando embora tudo o que não era dela. Mas naquela momento os desejos não se realizavam e as lágrimas molhavam o coração feito com pedaços de azulejo fixados com massa corrida na caixinha azul.
A irmã mais nova disse o que costumava dizer, mas disse menos do que queria, porque temia que com a repetição de suas palavras a irmã mais velha se tornasse mais descrente. Lilian sempre dizia as mesmas coisas, mas não, não era em vão. Ela realmente acreditava, mas quando falava para Catarina tinha a impressão de que não surtiam efeito, que a fé havia se tornado tão rarefeita, que com a face diluída, nem mesmo os ouvidos eram capazes de ouvir com esperança.
Antes de dormir, naquela noite, Lili fez uma prece em favor da irmã, acordou pensando em sua dor e queria mesmo que ela tivesse de volta o que lhe tiraram, queria que o coração de Cate pudesse ser colado com massa corrida numa história azul onde houvesse música e sonhos brilhantes. Queria que ela fosse novamente ela.
E se dispôs a pedir a Deus todos os dias por ela, até o sol iluminar a estrada dela. Até que ela pudesse abrir a caixinha de música, apanhar uma jóia e ir ao cinema de mãos dadas. (29/08/2006)

Um pé na frente do outro

Quem me dera um dia só por vez, uma noite bem dormida, um prazer a cada 12 horas, uma alegria em horas. E então sabe-se lá amanhã, sabe-se lá o que tem, mas sabe-se sempre que saberemos ser o que esperamos, que seremos o que queremos.
O tempo limita, mas é preciso,ainda assim, saber construir, mesmo que demore mais do que esperamos.
(15/09/2006)

O Mundo desconhecido

De todas as coisas que já haviam sido ditas, de todas as histórias que havia ouvido, de tudo que já lhe havia acontecido, aquilo era, inexplicavelmente, uma das mais dolorosas sensações. Kátia ainda não se enxergava como mulher e exatamente por isso,vez por outro, agia como criança, como se quisesse afirmar para si mesmo que ainda era só uma menina.
Ela começava a entender que crescera porque pela primeira vez, a dor doía mais tempo do que alguns minutos. Quando a gente é criança, as dores não dóem por muito tempo. Você chora, esperneia, mas há sempre alguma outra brincadeira a esperar.
Mas acredite, quando as coisas parecem ficar mais doloridas, abra os braços e receba a vida adulta, porque os problemas já não são mais tão pequenos.
Crescer era muito mais do que poder sair sozinha, do que poder tomar conta da própria vida, crescer era acima de tudo, escolher quem ela queria ser.
O problema das escolhas é que quase sempre elas levam a caminhos completamente diferentes e Kátia percebera que todos os dias, todas as manhãs que abrisse os olhos, já começaria a maratona de escolhas.
Ela escolheria a roupa que vestiria para o trabalho, que trabalho priorizaria sobre a mesa abarrotada de papéis, escolheria se iria jantar com uma velha amiga ou matar a saudades do namorado, escolheria se queria viajar no final de semana ou se começaria as aulas de francês.
E isso tudo lhe metia medo. Um medo que entrava pelo nariz, junto à respiração e lhe percorria o corpo todo.
As vezes ela acordava de manhã achando ainda ser criança. Ela esperava a mãe acordá-la e imaginava que o uniforme da escola estaria pronto para ser vestido, mas de repente, ela se via sob sua própria responsabilidade.
E para Kátia doeu. Doeu crescer, doeu ver que mundo é assim tão doído, tão sujo, tão diferente do que ela imaginava ser.